LIMITE DE TOLERÂNCIA
Anos atrás participei do lançamento de um produto para o mercado de autopeças. Era um conjunto satélite-planetária para os caminhões Mercedes Benz, composto por engrenagens sofisticadas que funcionam dentro do eixo diferencial. Não demorou para começarmos a receber reclamações de campo. Nosso conjunto era “duro”. Os mecânicos montavam e ele não girava com a mão, ficando travado. Fomos sondar com os engenheiros da fábrica e veio a explicação: limite de tolerância.
Toda engrenagem sai da linha de produção dentro de limites máximos e mínimos de dimensões. É coisa de fração de milímetros. Essa variação é chamada de “tolerância”. Qualquer peça dentro do limite de tolerância é considerada “normal”. Acontece que, quando você acopla duas engrenagens produzidas nas dimensões máximas do limite da tolerância, o conjunto fica muito apertado. Fica “duro”. O oposto também é verdadeiro, com o conjunto ficando “mole”. No entanto, dimensionalmente está tudo correto.
O lance da tragédia da TAM me parece igual: as peças individuais estavam dentro dos limites de tolerância. O reversor desativado estava no limite da tolerância, a pista curta estava no limite da tolerância, a falta de ranhuras estava no limite da tolerância, a chuva estava no limite da tolerância, a quantidade de passageiros dentro do avião estava no limite da tolerância, a área de escape estava no limite da tolerância. Resultado da mistura dos limites de tolerância: tragédia.
No entanto, os técnicos continuam dizendo que tudo estava dentro do “normal”. Aquela história de que o “livro da Airbus diz que o reversor pode ficar inativo por até dez dias”, é inesquecível.
Dizem que também foi assim com o fatídico buraco do Metrô, também em São Paulo: tudo certinho, dentro dos limites de tolerância. Desabou.
Nestes nossos dias de tecnologia quântica combinada com gerenciamento capenga, parece que jamais conseguimos ter a visão do todo. Cumprimos o que “o livro” diz, fazendo nossa parte, satisfeitos por estar dentro da normalidade. No limite da tolerância...
Igualzinho ao gerente de finanças que corta todas as despesas “supérfluas”, mesmo que destrua reputações, processos e relacionamentos. O resultado é um desastre, mas o papel dele foi cumprido à risca... Igualzinho ao arquiteto que projeta um banheiro sem janelas. O resultado é um horror, mas o banheiro ficou lindo! Igualzinho ao advogado burocrata que cria dezenas de procedimentos e pareceres, liquidando com a capacidade de ação. O resultado para quem quer fazer acontecer é terrível, mas o advogado cumpriu a função dele direitinho. Igualzinho ao executivo que serve barrinhas de cereais no serviço de bordo. O serviço é horrível, mas a redução de custos é ótima. Igualzinho ao juiz que manda soltar o criminoso, cumprindo sua função de seguir à risca uma legislação torta. Igualzinho a autoridade que cria normas impedindo que os maus alunos sejam reprovados. O resultado é desastroso para a sociedade, mas ela cumpriu seu dever: nunca antes neste país tivemos um nível tão alto de aprovação escolar...
E você deve conhecer mais dezenas de exemplos da aplicação do “limite de tolerância”, não é? Pois sabe o que é mais louco? É que a maioria absoluta dos que agem no “limite da tolerância” é composta de gente honesta, esforçada, bem intencionada até. Gente que é premiada por exercer suas funções direitinho, reduzindo os custos até os limites que o livro determina.
Enquanto nossos medíocres dirigentes, executivos e catedráticos olharem apenas para os componentes, sem olhar para o sistema, sem entender as relações de causa e efeito entre os limites de tolerância, teremos isso que está aí: tudo certinho, resultando em tragédias.
Tá na hora de questionar esses limites. Se não o limite de tolerância da tecnologia, ao menos o da nossa paciência.
Com os devidos créditos para o Luciano Pires
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